Prévia do livro "Os Lobos da Floresta da Eternidade" de Karl Ove Knausgård

Acabei de ouvir o álbum Rockin' All Over the World, do Status Quo. Ainda estou tremendo por todo o lado. Ouvia-o o tempo todo quando foi lançado. Era 1977, e eu tinha onze anos. Não o ouvi desde então. Até agora, quando, sentado entediado no meu escritório, comecei a voltar no tempo, por bandas que me lembravam outras bandas que me lembravam outras bandas, e ele reapareceu na tela à minha frente. Só de olhar para a capa me deu um arrepio. A imagem do planeta Terra, brilhando no espaço escuro, com o nome da banda em algum tipo de letras elétricas, e o título do álbum abaixo, em uma fonte típica de computador,
Uau! Mas foi quando apertei o play e comecei a ouvir que fiquei desmaiado. Lembrei-me de todas as músicas; foi como se as melodias e os riffs escondidos no meu subconsciente emergissem para se reconectar com suas origens, seus pais, aquelas antigas músicas do Status Quo às quais pertenciam. E não só isso. Com elas veio também uma enxurrada de memórias, todas de uma vez: uma infinidade de sabores, cheiros, visões, eventos, sensações, atmosferas, tudo. Minhas emoções não conseguiam lidar com tamanha quantidade de informações de uma só vez; eram todos tremores e vibrações dentro de mim durante os três quartos de hora que o álbum dura.
Eu tinha gravado — não conhecia ninguém que tivesse toca-discos naquela época, exceto minha irmã, que só ouvia jazz e música clássica — e eu a ouvia o tempo todo num aparelho de som preto que ganhei de Natal no ano anterior. Funcionava a pilhas, e eu a levava para todo lugar. Eu não conseguia parar de cantar junto. Se você não me quer, não fique por perto. Você não me quer mais.
Que maravilha ouvir isso de novo! E esse outro! Tutututake nós sozinhos homens um mento para manter indo você onde De du du de du du
Ouvimos bandas como Status Quo, Slade, Mud e Gary Glitter; os que eram um pouco mais velhos também adicionaram Rory Gallagher, Thin Lizzy, Queen e Rainbow. Então tudo mudou, pelo menos para mim, porque de repente tudo era Sham 69, The Clash, The Police e The Specials no volume máximo. Continuei ouvindo todas essas bandas de vez em quando. Não Status Quo. É por isso que teve tanto impacto em mim, como uma explosão dentro de mim. E é por isso que de repente comecei a chorar quando ouvi o refrão: An ai laik it ai laik it ai la la laik it ai la la laik it ai la la laik it/ Aqui vamos nós: rockin' all over the world
Não foram muitas as coisas boas que aconteceram naquele ano do Senhor de 1977, pelo menos para mim, foi mais uma sensação de que algo estava acontecendo e, acima de tudo, de que algo existia.
Que eu existia. E que eu estava lá. No meu quarto, por exemplo.
Hummm, o cheiro do aquecedor elétrico. A música do aparelho de som.
Não muito alto, porque meu pai estava em casa, mas alto o suficiente para que as sensações me invadissem.
A neve lá fora. Seu cheiro quando molhada, quase mais parecido com chuva do que neve. Um ai laik it ai laik it ai laik it ai laik it ai la laik it la la laik it la la laik
"Tem uma garota espreitando lá fora. Você a conhece?" Fui até a janela da sala. De fato, havia uma garota andando pela rua, do outro lado da cerca. Ela parava e olhava para a nossa casa. Não conseguia me ver, mas ainda assim. Então recomeçava, desaparecendo da minha vista atrás dos arbustos e reaparecendo, repetidamente, ao longo da cerca.
"Então, você a conhece ou o quê?" Hilde perguntou.
"Sim", respondi. "É a Trude. Ela está na outra turma."
"Ha!" Hilde exclamou. "Mas você só tem onze anos."
–Eu tive muitas namoradas.
–Aqueles que você beijou na bochecha, certo?
"Eu beijei alguns deles na boca", eu disse.
"Então saia e diga alguma coisa para ele." Balancei a cabeça.
– Por que não? Você tem outra namorada?
–Aquela menina é um pouco especial.
–Você não está bem da cabeça?
–Não, não é isso. É só diferente.
"Porque você também é especial", eu disse, olhando para ela. Seu rosto se iluminou.
"Você não está muito bem da cabeça, quero dizer", acrescentei. Então, alguém bateu na porta.
"É a Trude", disse Hilde. "Você não vai abrir?"
–Você poderia dizer a ele que não estou aqui?
–Metade do saco de doces de sábado.
Fiquei na escada ouvindo Hilde dizer que eu não estava lá e que ela não sabia onde eu estava. E então vi Tru voltando para casa na neve.
Não tenho ideia se aconteceu exatamente assim. Lembro-me de ter visto e de ter dado um monte de doces para Hilde para fazê-la mentir. Mas o que mais me lembro é da neve, da sensação da neve, da atmosfera. Havia neblina também. Neve branca e macia, neblina cinza. E Rockin' All Over the World .
Existe alguma lembrança que não seja afirmativa?
Claro que não, uma pessoa é feita de memórias, o que só pode ser afirmativo: elas são o que a pessoa é.
Mas uma das minhas lembranças se destaca, de alguma forma. Não tem nada a ver com mais nada. É algo que eu vi. E foi naquele inverno, algumas semanas antes do Natal de 1977. Lembro-me disso sem a ajuda de nenhuma música. É uma lembrança que brilha dentro de mim de uma forma inexplicável.
Do outro lado da rua, em frente à nossa casa, uma floresta descia em declive até uma enseada; deste lado ficava o conjunto habitacional. Se você seguisse a estrada até o cruzamento e virasse à direita, chegaria a uma ponte baixa que cruzava a enseada. Além da ponte, havia um conjunto de pontões, e ainda mais além ficava o estreito.
Certa noite, eu caminhava sozinho por aquela estrada. Estava escuro e com neblina, a neve tinha começado a derreter durante o dia e o asfalto estava coberto de neve derretida. Não sei para onde eu ia nem de onde vim; tudo isso se apagou da minha memória. Talvez eu estivesse indo em direção aos pontões para ver se havia alguém lá; costumávamos nos encontrar lá. De qualquer forma: escuridão, neblina, asfalto coberto de neve derretida. Minha jaqueta brilhava à luz do poste. Atravessei a ponte. A água estava preta e fria.
Mas o que era aquilo? Algo brilhava lá embaixo.
Lá embaixo, nas profundezas da água negra, havia algo brilhando.
Demorei alguns segundos até perceber o que era.
Então eu finalmente entendi: vi que faltava uma pedra no meio-fio e que havia marcas de rodas que chegavam até a beira da água.
Deve ter acontecido há um momento, porque os faróis do carro ainda estavam acesos.
Dei meia-volta e subi a colina correndo. Precisava encontrar um telefone e chamar uma ambulância. Mas, à medida que me aproximava das casas, não tinha mais tanta certeza. Talvez não fosse um carro. Podia ser outra coisa. E talvez eu estivesse fazendo um estardalhaço à toa. O que meu pai diria?
Cheguei em casa, entrei e tirei minha jaqueta e botas.
Papai colocou a cabeça para fora do escritório quando me ouviu.
–Na loja nova – respondi.
"O jantar está na mesa", disse ele. "E depois direto para a cama."
Fiz o que ele me disse. Comi os sanduíches que ele tinha feito para mim e fui dormir. Fiquei deitado no escuro por um longo tempo, pensando na luz na água, no carro submerso brilhando, enquanto eu estava deitado na cama.
No dia seguinte, lá embaixo, havia uma ambulância, um carro de polícia e um guincho. E no dia seguinte, estava na primeira página do jornal. Todo mundo estava falando sobre isso. Todo mundo, menos eu. Agora, 35 anos depois, ainda não conto a ninguém o que vi ou fiz. Porque sei que poderia ter salvado o homem se tivesse feito a coisa certa. Mas não fiz, e ele morreu. Ninguém precisa descobrir. A memória é minha, só minha, e a menos que algo imprevisto aconteça, vou levá-la para o túmulo.
Clarin